16.7.11

O INFERNO DAS BOAS INTENÇÕES

Pingos d'agua. Ah, como eu odeio crianças. Várias gotas, todas em coro uníssono. Odeio crianças. Caem em cima daquele líquido maldito e viscoso. Deus – melhor não botar Deus no meio dessa história, ele não tem nada a ver com isso – odeio crianças. Um caminhão, uma roda, um contato. E a criança. Roda no maldito líquido. Criança na maldita rua. Eu na maldita calçada – certas horas não há como parar e pensar, assim como parar e olhar para os dois lados de uma rua. Humanos precisam fazer decisões na vida. Decisões rápidas, inteligentes e inadiáveis. Como nesse caso. – A roda vira, ele cai, eu corro, agarro, corro, pulo. Ele continua, bate e, graças a mim, não mata ninguém. Todavia, odeio crianças.

- Você está bem? – Não há resposta – Oi, você está bem? – Ela está viva, ela está acordada. Mas não responde. – Você deve estar assustada. Venha, vamos comer algo.

Crianças adoram cachorro-quente. Eu não. Lambuzam-se todas, o ketchup caindo pelo lado oposto da mordida, fazendo com que a salsicha seja atirada, como um caminhão no óleo, para fora do pão. Pegam aquela carne toda tingida de vermelho e amarelo, com a mão inteira, e botam de volta no pão, como se nada tivesse acontecido. Odeio.

- E então, agora pode me dizer o seu nome? – Ela vira o rosto para mim com aquela boca condimentada e depois de alguns segundos volta a morder o pão. Melhor esperar?

Ódio profundo. Cada vez mais minha pressão aumenta. Meu coração bate mais forte. Como? Eu ainda não entendo.

- Terminou? – Inútil. – Agora eu preciso saber: quem é a sua mãe? Onde mora? Eu não posso te ajudar se você não falar comigo.

Ela levanta da mesa, não pronuncia uma palavra sequer e anda até a saída. Apenas até a saída. Seria ela muda? Segui-a até a porta.

- Você quer que eu te acompanhe até a sua casa, é isso? – Nem um sinal. Ela podia ser muda, mas por que não reagia?

Eu sempre pensei que o maior erro dos humanos era a falta de comunicação. Eu sempre quis explicações, sempre a verdade, sempre resolvi meus problemas com longas conversas. O silêncio só atrapalha, o silêncio é ambíguo, cria dúvidas, produz guerras. É misterioso demais. – O mistério maior é a existência de mistérios. É tudo tão facilmente explicado com palavras. Por que romantizar?

Começou então a andar, de novo sem pronunciar uma só sílaba. Seguiu a rua, virou à esquina, continuou reto e atravessou a rua sem parar antes.

- Ei, você não pode atravessar a rua assim desse jeito. Não é toda hora que terá alguém como eu para salva-la.

Ela finalmente parou de andar, de repente, virou pra mim e me olhou com uma cara que, definitivamente, não era de uma criança. Pensei que havia acertado a ferida dela, achei que aquela era a hora de ouvir a sua voz. Mas, depois de um bom tempo parada, olhando profundamente com seus olhos raivosos, virou e continuou andando.

Passamos em frente a um parque de diversões, porque não? Peguei-lhe a mão e entrei no parque. Talvez estivesse muito triste para falar. Uma boa diversão faria bem a ela. Se é preciso suborná-la para ajudá-la, tudo bem. Fomos ao carrossel, não abriu um sorriso. Fomos à montanha russa, nenhum movimento. Fomos no túnel do terror, um grande palhaço pintado com cores gritantes, naquela escuridão imensa, ajudado por uma voz ao fundo de desespero e outra de uma risada maligna caiu de repente sobre nosso carrinho. Não me contive, berrei, maldito susto. Não posso dizer o mesmo dela.

O rosto dela não se movia, era um rosto sério, nervoso, como se estivesse desiludida, mas de uma maneira forte, impactante. Ela me lembrava de minha “ex” quando, na ocasião, segui-a por um bom tempo, implorando por sua volta, perguntando porquês e não obtendo nenhuma resposta. Essas lembranças ligadas ao fato dessa maldita criança me irritam profundamente. Catei a mão dela de novo e saí do parque:

- E então? Você é alguma múmia por acaso? – E ela continuava a fitar o nada, séria. – Menina, entenda uma coisa... Você não pode ficar por aí largada. Sua mãe deve estar preocupada, arrancando os cabelos, chutando tudo, quebrando tudo, com medo. – Eu estava quase descontrolado - Você pode se machucar na rua!

Alguma coisa tinha de ser feita. Eu, cada vez mais, sentia necessidade de fazer algo por ela. Era o certo, ajudar. Mesmo que aquela criança me irritasse profundamente. Na dúvida continuei a andar com ela pela cidade, para, quem sabe, alguém ver ela. Passei por várias delegacias, não, eu seria o suficiente, já bastava o meu empenho. Maldito empenho.

A minha cabeça já começava a doer. Talvez impacto da fina e leve chuva que caía. Fina e leve, mas eu estava embaixo dela fazia horas já. Guarda-chuva? Ela recusara, fugia do guarda-chuva. Então, irritado, joguei-o no lixo com toda a minha raiva. Agora eu sentia que Atlântida estava sendo reconstruída dentro de minha cabeça. E a criança, maldita criança, nada.

- Olha aqui garota... – Eu não agüentava mais. Fiquei na frente dela, abaixei, segurei fortemente seus braços. – Eu preciso te ajudar. Você precisa de ajuda! Então me fale onde fica a porcaria da sua casa! – Minhas mãos apertavam seus braços com muita força mas ela não reagia com um “ai” sequer. – Então?

Soltei-a. Ela novamente olhou para os meus olhos. Aqueles olhos queimavam-me de tão gelados. Não entendia como uma criança poderia ter aquele olhar. Depois disso levantou o braço para frente e apontou. Finalmente uma reação! Agora ela tinha entendido que eu só queria o melhor para ela.

Ela começa a andar e eu sigo triunfante! Ela vira a esquerda, segue, vira a direita, segue, vira a esquerda, está me levando até seu lar? Talvez tenha entendido que eu não sairia do pé dela até ajudá-la. Vira a direita, estamos chegando? Ela chega numa avenida e, quando olho para frente, vejo uma loja de brinquedos. Decepção. Mas por pouco tempo. Quando olho para a menina vejo uma coisa que me faz tremer Ela estava sorrindo. Sim, ela que não demonstrava sentimentos, excetuando-se raivas passageiras sobre minha pessoa, estava sorrindo com todos os dentes amarelos que tinha.

Nesse momento todo o meu corpo se renovou, finalmente eu havia passado no teste secreto dessa criança. Ela estava me testando até agora. Oras, nunca fale com estranhos. Agora ela quer a prova final. Ela queria um brinquedo de lembrança. Uma boneca que a faria lembrar de mim todos os dias? Quem sabe?

Entramos na loja, ela continua sorrindo, compulsivamente. Foi em todos os corredores e na ultimo deles viu o que queria: Uma lousa mágica. Daquelas que você escreve e apaga ao levantar uma película de plástico. Fomos até o caixa, paguei. Ela continuava feliz, eu estava satisfeito.

Saímos da loja e ela estava lá, escrevendo no seu novo brinquedo, como estava feliz! Escrevia, escrevia e escrevia, e apagava quando eu tentava ler. Então nessa brincadeira ela continuou até chegarmos na avenida de novo. Estava tão distraída se com a lousa, pensei eu, que não viu, mais uma vez, o sinal fechado para pedestres. Repetia-se a cena, eu indo atrás dela para não se machucar. E é no meio da avenida que seu brinquedo escorrega e cai. Rola quadradamente por pouco tempo, mas fugindo de minhas mãos. Finalmente a pego. Maldita lousa. Quando olho para a calçada a vejo, sorrindo mais ainda, com seus olhos fixos em mim. Olho para a lousa em sua mão.

Dizem que em certos momentos toda a sua vida passa pela sua mente. No meu caso só consegui lembrar desses acontecimentos. O tempo foi curto. O tempo de olhar para o brinquedo e ler. Depois disso olhei para frente e vi, por um tempo ínfimo, mas infinito, a minha redenção: Um ônibus. Lotado com os sentimentos do mundo, de mistérios pessoais, lotado de gente que, com certeza, eu ajudaria se minha bondade, caridade e curiosidade não estivessem agora no fim do itinerário: No inferno das boas intenções.

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