28.8.14

C

Estava ali para qualquer pessoa ver, não havia nada demais naquela imagem. Apenas ela semi-nua e sentada numa cama, não havia nada de especial naquela foto. Não havia nada de importante a se agarrar a vida, não havia nada com o que se preocupar de verdade. Então para que ela devia se importar, para que ela tiraria mais fotos e dividiria mais as suas impressões? Pois então alguém do outro lado do mundo lhe deu um coração. Um simples coração, daqueles que você recebe todos os dias em uma comunidade que se comunica através de emoções projetadas. Logo alguém mais perto lhe deu outro coração e adicionou ao seguir:

- Que pés maravilhosos.

Ela ficou sem entender por um tempo e por outro momento ficou perplexa. Estava ela passando para frente aquela imagem sua por algumas razões diferentes, mas nunca havia pensado que aquele pé seria alvo de admiração. O seu corpo estava quase que exposto totalmente, sua pele era alva e seu cabelo era ruivo, tinha algum volume nos seios, suas pernas poderiam ser consideradas bonitas, era um corpo bonito(isso era o que ela imaginou no dia da foto e dependendo do dia essa opinião variava), porém não conseguia imaginar alguém admirando os seus pés.

Alguns dias depois resolveu arriscar e tirar uma foto apenas de seu pé, as dobras que se acumulavam na sola eram numerosas e formavam vários caminhos, várias ondulações e isso de alguma forma lhe fez sentir que aquele pé era realmente uma parte do seu corpo, que fazia parte do que ela era. Começou a buscar fotos de pés e um atrás do outro eram pés lisos, alguns tinham uma protuberancia em cima(que ela gostava de chamar de bundinha), outros eram mais duros perto do calcanhar, mas todos eram muito lisos.

Quando acordou, eram 7 da manhã. Estava sentada na cadeira com o nariz na tecla "C", havia dormido procurando imagens de pés durante a madrugada. Que tipo de pessoa faria isso insistentemente até dormir? Não havia sentido nisso. Foi se preparar, havia um caminho de três horas a se caminhar até a sua faculdade. No banho perdeu muito tempo olhando para o seu pé e como ele contrastava com o piso do banheiro. Via várias gotas de água caminharem por vias diferentes em suas dobrar do pé, cada uma pararia em lugar diferente partindo de um mesmo destino. Quando voltou para o quarto ela percebeu que sua tela parecia uma cópia do seu pé, vários "C"'s se repetindo um atrás do outro fazendo inúmeras ondulações com a primeira letra do seu nome. Como se cada pequena ondulação do seu pé fosse ela mesma projetada. Desligou a máquina e saiu correndo, pois três horas poderiam virar quatro num piscar de olhos.

Esperou o primeiro transporte do dia, entre muitos, num ponto de ônibus na esquina da sua casa. Do seu lado havia uma velhinha que já estava acordada, pronta para ir ao médico. A senhora olhou para ela e perguntou:

- Aquele ônibus vindo é o 003? Não estou enxergando bem, é a catarata, sabe?
- Sim, é sim. Aliás, usarei este. Quer ajuda?

E assim ajudou-a a subir no ônibus e conseguiu um lugar pra ela depois de cutucar um menino que fingia dormir de fones de ouvido num assento preferencial. Se irritou profundamente, mas depois se acalmou quando a velhinha sentou. Ela então foi para o fundo do ônibus, pois a viagem era muito longa para ficar perto da porta do meio, onde a cada ponto mais e mais pessoas se amontoavam por algum motivo que não faria sentido para ela. Colocou assim os seus próprios fones e começou a ler um texto da matéria. Ou pelo menos era o que pretendia, pois ao ver o primeiro "C" no começo do parágrafo relembrou de seu pé. E assim foi por toda a viagem.

Chegando no segundo ponto havia uma enorme fila para o ônibus que ela pegaria, todas aquelas pessoas, assim como ela, dormiam em um lugar afastado de onde a maior parte do dia delas era desperdiçado. Entrou na fila e esperou pacientemente. Olhava fixamente para o comercial do refrigerente a sua frente, mas só conseguia ver uma letra dele. E quando finalmente iria entrar no ônibus uma senhora passou reto por ela trombando com a bolsa no lado de sua barriga e ela por reflexo lhe deu também um pé na sua perna e a velha caiu se agarrando a escada do onibus. Todo mundo começou a cerca-la e no fim saiu correndo até o fundo do ônibus e olhou a janela por toda viagem sabendo que todos os viajantes olhavam para ela.

Foi segurando raiva, arrependimento e senso de justiça até chegar no ponto onde ela pegaria o metrô. Esperou todos sairem e não desviou o olhar da janela enquanto isso. Saiu e se mesclou a multidão que caminha a passos de pingüim no metrô. Havia poucos metros a caminhar, porém muitos minutos a se perder olhando para a nuca de uma pessoa desconhecida. Assim como todas as outras que olhavam uma a cabeça da outra de modo mais impessoal possível. Entrou no metrô e logo em seguida um homem entrou atrás dela - e por entrar alguém poderia dizer que era quase literalmente - e ali ficou. Olhou para os lados e viu apenas consentimento com tudo aquilo.

- Da licença? - insistiu.

As pessoas naquele vagão consentiam com baixos salários, um homem do lado consentia em usar camisa social e gravata sem saber o motivo pelo qual aquilo lhe faia alguém mais confiável, algumas pessoas consentiam em serem humilhadas a todo instante, porém ela não consentiria com aquilo. Não ela. Ela tinha desde manhã até a noite que consentir com muita coisa, com o lugar onde morava, com o fato de estar sozinha, com o corpo que ela havia nascido. Tudo isso fazia sentido na cabeça dela. Mas aquilo não fazia.

- Por favor, licença? - Insistiu.

Faltava apenas uma estação para chegar no seu destino, porém o suor descia pela sua testa, no seu pescoço uma veia palpitava de modo nervoso. Seus dentes rangiam, sua mão fechava e seu cotovelo acertava o que tanto lhe incomodava.

- Filha da puta, vadia!

O vagão todo de assustou e ficou olhando, ela continuou olhando para a janela e o homem continuava a xingar ela até o apito do trem liberar ela dali. A cabeça doía, as pernas tremiam, a raiva subia e ela ainda estava a um ônibus de seu destino. Ela queria desistir ali e agora. Sentou no ponto e deixou o seu ônibus passar, não havia mais vontade de fazer qualquer coisa. Foi nesse momento que sue celular vibrou no seu bolso. Havia um novo coração para o seu pé. Pensou que pelo menos alguém gostava de uma das partes dela. Deu um riso nervoso, cheio de sarcasmo e tristeza enquanto se levantava para pegar o próximo ônibus.

Por esperar, acabou pegando um ônibus quase que vazio. Quando chegou na universidade, levantou e em pé não segurou em nenhum lugar do ônibus. Todo dia pegava aquele trajeto e todo dia aquelas rotatórias lhe faziam trombar com outros passageiros, pedia desculpa, segurava forte e machucava as vezes as mãos. Hoje o ônibus estava vazio e ela podia soltar os braços e deixar que as ondulações a jogassem para onde a tangente determinava. Voou pela janela, rolou pelo chão e bateu a cabeça na estátua de alguém que ninguém mais lembrava quem era. Olhou para frente e estava sem sapato, o pé torcido e virado pra ela. As ondulações começaram a se mexer e ali ficou, sozinha, até ser socorrida. Acordou sozinha no hospital e o médico lhe perguntou se estava melhor. Então respondeu:

- Com o pé torcido talvez fique mais fácil fazer o caminho de volta.