22.10.10

A Ampulheta


Foi numa quinta que a percebeu. A estátua estava numa praça em frente a sua casa: só possuía pernas. Estranhou, pois, afinal, não havia visto nenhuma movimentação para construí-la. No dia seguinte dois joelhos já apareciam; uma semana depois o tronco estava se formando e, por mais que procurasse, não via quem a construía.

Longe, da janela do seu quarto, observava o crescimento da estátua e quando finalmente estava pronta, com uma placa de inauguração – que não viu acontecer – decidiu descer e admira-la de verdade. Ficou um bom tempo observando seu nariz: era lindo. Depois quis matar a curiosidade e ver quem havia feito tal obra de arte, porém ao tentar ler a placa as letras não estavam lá. Abaixou para certificar-se de que não estava louco quando sentiu uma pancada na cabeça: o nariz da estátua estava a sua frente, ao chão. Apesar de linda, pelo jeito tal obra de arte era feita por alguém inexperiente e com muito a aprender.

Ao voltar do trabalho, no dia seguinte, passou pela praça e resolveu tentar ler a placa da estátua mais uma vez. Sem sucesso. Jurava que de longe tinha visto letras em relevo, porém ao chegar perto já não as via. Conformado resolveu apreciá-la mais uma vez: espantou-se. Aquele lindo nariz que havia caído estava lá e ainda mais bonito do que a outra vez. Com certeza aquele que a havia construído aprendera muito bem a reconstruir.

No dia seguinte acordou com uma idéia estranha. Sonhara com uma cicatriz no antebraço esquerdo da estátua. Levantou e foi vê-la. Olhou o antebraço longamente a procurar a cicatriz, mas nada encontrou. Deu a volta na estátua, olhou mais de perto e, ao relaxar conformado em não achar a cicatriz, tensionou-se: o braço caíra bem diante dos seus olhos. Não havia vento, não havia tocado a estátua. Por que desmoronava assim?

Outros dias se passaram, viajara, mas mesmo longe pensava naquela que estava só, na praça, naquele mistério. Aquela estátua tomava seu pensamento o dia todo. Comia lentamente, seus amigos pediam para ele prestar atenção na correnteza do mar quando o viam, quase inconsciente, ao fundo deste.

Quando voltou não pensou duas vezes. Mal se despediu dos amigos, deixou as malas com o porteiro de seu prédio e, correndo, foi à praça vê-la: estava mais linda do que nunca. Seus braços eram novos, perdera a reconstrução mais uma vez. Sentou na grama admirado com tal beleza e fitou o rosto dela longamente. Os olhos lhe diziam algo, pareciam vivos, em movimento. E realmente: racharam-se e caíram ao chão seguidos da cabeça. O terror apoderou-se dele por um momento, mas logo foi substituído pelo desespero puro ao constatar a verdade.

Os dias passaram e evitava passar pela praça. Quando era necessário passar pela estátua evitava o olhar apesar do desejo. Ignorava-a e, cada vez mais, sentia que seu coração explodiria se não a olhasse. Trancou-se no quarto por dias, não queria ceder a tentação de olhá-la. Tentava imaginá-la, mas não era o suficiente. Um dia acordou e percebeu que havia desenhado uma figura amorfa repetidamente por todo o seu quarto. Tateou as figuras, não chegavam perto da original. Desceu desesperado até a praça e a olhou com todos os detalhes possíveis. Admirou-a, tocou-a e quanto maior era o seu desejo, seus olhares, mais ela esfarelava à sua frente. Chorava, enchia a mão de mármore em pó e deixava-o lentamente cair.

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